Supervia: O Trilho Quebrado da Privatização no Rio de Janeiro
Marcos Galesi, jornalista e especialista em transportes
01/07/2025

Durante quase três décadas a SuperVia representou a esperança de uma revolução nos trilhos urbanos do Rio de Janeiro. Privatizada a malha suburbana fluminense em 1998 a promessa era clara: modernizar, humanizar e integrar o transporte ferroviário naquela região. Mas, como em tantos outros casos no Brasil, a realidade foi um trem que descarrilhou.
A concessionária assumiu uma malha ferroviária debilitada, com desafios históricos herdados da CBTU. No início houve certo entusiasmo: novos trens chegaram, estações foram pintadas e os discursos de modernização ecoaram pelos microfones das autoridades. Mas bastaram poucos anos para que o verniz começasse a descascar. A superlotação persistia, os atrasos se multiplicavam e o sucateamento era visível até para quem passava no entorno das plataformas.
Com o tempo a situação virou caso de calamidade. A empresa alegava prejuízos, baixa demanda, vandalismo e inadimplência do poder público. Os passageiros, por outro lado, enfrentavam um cotidiano de humilhação: trens quebrados, insegurança, sujeira e longos intervalos. O trajeto entre Santa Cruz e Central, por exemplo, que durava 75 minutos na década de 1990, passou de 98 minutos em 2025. Um verdadeiro retrocesso sobre trilhos.
A pandemia foi o golpe final. A queda brutal no número de passageiros escancarou o abismo entre a lógica do lucro e a necessidade do serviço público. Em 2021, a SuperVia pediu recuperação judicial. Em 2025, anunciou sua saída. Um fim melancólico para uma história que começou sob o signo da esperança neoliberal.

Desembarque dos trens da série 3000 da Supervia em 2012.
(Acervo Imprensa Governo Rio de Janeiro).
E agora? O governo estadual busca nova operadora enquanto injeta recursos para evitar o colapso total do sistema. Mas a pergunta permanece: privatizar, por si só, resolve? No caso da SuperVia, a resposta parece ser um retumbante “não”. Faltaram fiscalização, cobrança de metas e, principalmente, uma visão de mobilidade como direito e não como mercadoria.
A saída da SuperVia é mais que uma mudança de gestão. É um alerta. O Rio de Janeiro precisa urgentemente repensar o modelo ferroviário. Porque transporte público não é produto - é serviço essencial, é dignidade, é cidade viva. E o que se espera dos trilhos, afinal, é que levem as pessoas adiante - não que as deixem esperando na plataforma por um trem que nunca chega.
O Absurdo de Abandonar Trilhos e Sucatear Trens
Marcos Galesi, jornalista e especialista em transportes
25/06/2025

Em tempos de mobilidade em colapso, cidades engarrafadas e emergência climática, é inadmissível que tantas cidades brasileiras convivam com ferrovias abandonadas ou subutilizadas. Mais absurdo ainda é ver a maior companhia ferroviária da América do Sul, a CPTM, sucatear trens com apenas 25, 26 anos de uso - muitos ainda em ótimo estado - para serem vendidos como ferro-velho.
Cidades como São Carlos, Araraquara e Bebedouro, todas com malha ferroviária instalada, poderiam hoje operar trens suburbanos ou VLTs, resgatando trechos desativados e adaptando-os a novas realidades urbanas. Essas cidades crescem, se verticalizam e enfrentam crescentes desafios de mobilidade - mas os trilhos seguem lá, silenciosos e abandonados.
A CPTM, que deveria ser exemplo de reaproveitamento e racionalidade, opta por leiloar composições com potencial de uso em outros contextos. Trata-se de material rodante que, com readequações técnicas, poderia perfeitamente servir em linhas regionais, alimentando novos sistemas de transporte nas cidades do interior. Ao invés de pensar em redistribuição, modernização e uso inteligente, vemos um ciclo de desperdício escancarado, sem qualquer planejamento intermunicipal.
O Brasil é um país com vocação ferroviária desperdiçada. Pagamos caro para manter sistemas rodoviários congestionados, poluentes e caros, enquanto deixamos linhas férreas apodrecerem. Pior: entregamos trens ainda úteis ao desmanche, ao invés de redistribuí-los estrategicamente. É como jogar no lixo o que pode ser pão na mesa de quem mais precisa.
Reativar trechos, readequar composições, criar corredores de VLT ou trens regionais em cidades médias - tudo isso é possível. O que falta é vontade política. Falta visão de longo prazo. Falta uma política de transporte integrada, onde os trilhos sejam enxergados não como sucata, mas como solução.
O reaproveitamento ferroviário pode ser a chave para uma revolução silenciosa, limpa e acessível. Se trens estão sendo baixados na CPTM, por que não estudá-los como base para novos serviços no interior? Por que não criar um banco de composições públicas reaproveitáveis, a serem oferecidas para projetos locais, com apoio técnico e financiamento estruturado?
Continuar ignorando esse potencial é um erro grave - e, para quem depende do transporte coletivo todos os dias, é uma injustiça inaceitável. Cidades de médio porte precisam ser incluídas no mapa da mobilidade de verdade. E os trilhos que ainda cruzam essas cidades devem voltar a cumprir seu papel: transportar pessoas com dignidade, conforto e sustentabilidade.
É tempo de fazer os trilhos falarem novamente. E mais do que isso: é hora de ouvir o que eles têm a dizer sobre o futuro que queremos construir.
MAFERSA E COBRASMA: DUAS GIGANTES BRASILEIRAS
Marco Brandemarte, historiador e pesquisador de transportes
17/04/2045

As gigantes Mafersa e Cobrasma foram fundadas em 1944 num cenário de intenso sucateamento das ferrovias brasileiras, que não queriam se sujeitar mais uma vez à dependência externa, entre outros motivos, pelo potencial de crise que se identificava na questão cambial mundial. Isso sem falar no esforço de guerra a que a indústria internacional estava comprometida, mobilizando recursos materiais e humanos para auxílio às forças militares durante a 2ª Guerra Mundial.
Até a década de 1960 as duas fabricantes dedicaram seus esforços no fornecimento de material ferroviário para o mercado nacional, época em que a malha ferroviária do país atingiu seu auge com cerca de 38 mil quilômetros. Entretanto nos anos seguintes podemos citar 4 fatores que contribuíram para o encolhimento das ferrovias no Brasil:
1-A crise do café: o crash da bolsa nos Estados Unidos, na época o maior comprador de café brasileiro, e a grande depressão que se seguiu tiveram impacto direto sobre as ferrovias. Em um curto espaço de tempo as exportações da mercadoria despencaram, assim como os preços. As ferrovias, que eram administradas pelo setor privado sob regime de concessão passaram a transportar cada vez menos cargas e viram sua rentabilidade despencar tendo início neste momento um período lento de decadência que culminaria na estatização das estradas de ferro posteriormente;
2-Surgimento do “rodoviarismo” no Brasil: com o slogan de “cinquenta anos em cinco” o presidente Juscelino Kubitschek incentivava o desenvolvimento da indústria automobilística nacional e a construção de milhares de quilômetros de rodovias;
3-Criação da Rede Ferroviária Federal (RFFSA): estatal que passou a administrar as ferrovias que até então estavam nas mãos de diferentes empresas privadas. Os projetos de recuperação e melhoria da malha ferroviária, contudo, incluíram a desativação de uma série de linhas e ramais considerados deficitários;
4-Estagnação e corredor de commodities: a ditadura militar mudou o foco da política de transportes, que passou a ser mais voltada para as rodovias, com a aposta em grandes obras de engenharia, como a ponte Rio-Niterói e a Transamazônica que até os dias atuais encontra-se sem pavimentação asfáltica; a Ferrovia do Aço começou a ser construída em 1973 com a promessa de ser entregue em mil dias, mas só foi inaugurada em 1992, e com um porte muito mais modesto do que o projeto inicial.
Um dos principais obstáculos à realização dos investimentos necessários à malha ferroviária do país naquela época foi a crise do petróleo de 1973 e o período turbulento que se seguiu. O Brasil passou a ser visto como país de alto risco, dificultando seu acesso fácil ao crédito internacional impedindo que os planos nacionais de desenvolvimento pudessem ter sequência. Nos anos 1990, em um contexto de baixo crescimento econômico, inflação elevada e alto nível de endividamento público, a RFFSA é liquidada e as ferrovias são novamente concedidas à iniciativa privada, por meio do Plano Nacional de Desestatização (PND). A partir daí, elas passam a funcionar majoritariamente como corredores de transporte de commodities para exportação. Assistimos a um verdadeiro desmonte das linhas de passageiros, sendo todo o patrimônio ferroviário (incluindo estações, vias e leitos, eletrificação, locomotivas e vagões) aos poucos destruídos.
Num cenário totalmente instável, acíclico e de poucas encomendas, algumas até mesmas canceladas pelos Governos Federal ou Estadual, assistimos as gigantes abraçarem outras tecnologias e ramos industriais, não dependendo exclusivamente do setor ferroviário em suas atividades.
Desta forma a Mafersa diversificou suas atividades fabris produzindo não só vagões, trens de metrô e subúrbios e rodas ferroviárias, mas também trólebus, ônibus monoblocos e plataformas para coletivos.
Diferentemente da Mafersa que “nasceu com DNA Ferroviário” a Cobrasma teve origem na aciaria e fundição de peças para tratores, indústrias agrícolas e mineração, mais tarde ingressando na indústria ferroviária reformando vagões importados pela RFFSA na década de 1950. Mais tarde em parceria com a norte-americana Amsted inicia uma cooperação técnica para fabricar seus primeiros vagões de carga dando início à participação ativa no fornecimento de material ferroviário, passando posteriormente a fabricar AMVs (aparelhos de mudança de vias), engates e eixos ferroviários, quintas-rodas para cavalos (caminhões), além de equipamentos para siderúrgicas, petroquímicas e usinas nucleares, somando-se também ao seu portfólio ônibus rodoviários e trólebus. Quanto aos trólebus é importante frisar que a Cobrasma só fabricou estes devido à demanda da Companhia do Metropolitano de São Paulo – na época os únicos trólebus do mundo produzidos em aço inoxidável. Os três primeiros protótipos em parceria com a BBC (Brown Boveri Company) e Villares foram para o sistema de transporte de Araraquara-SP, sendo escolhido pelo Metrô de São Paulo os trólebus com equipamentos Powertronics.
Mesmo diante de tanta diversificação, ambas encerraram suas atividades fabris na segunda metade da década de 1990. Porém é importante destacar que tais empresas foram pioneiras em diversos processos fabris e de incorporação de tecnologias para o mercado nacional. Como exemplo podemos citar a fabricação do primeiro trem de metrô brasileiro no final da década de 1960 pela Mafersa, produzido sob licença da The Budd Company, mais tarde promovendo a nacionalização da quase totalidade dos componentes e consequente desenvolvimento e especialização do parque fabril nacional. A Cobrasma também sob licença da Francorail produziu trens de metrô e subúrbio para diversos sistemas brasileiros. Nos ônibus e trólebus ambas aplicaram tecnologias de ponta tanto em seus projetos quanto em seus componentes, como por exemplo a estrutura da carroceria dos trólebus Cobrasma em aço inoxidável, mais leve e resistente à ferrugem e corrosão, acoplada a uma plataforma confeccionada em aço-carbono.
Esta capacidade de buscar soluções e tecnologias no exterior e adaptar ao mercado doméstico, graças à competência e dedicação de seus profissionais e colaboradores, fez com que as duas gigantes se inscrevessem em boa parte da história dos transportes brasileiros, dando início a uma nova era na indústria de base nacional.
Que fique aqui registrado este singelo resumo histórico e uma homenagem do autor a todos os profissionais que atuaram nestas empresas, sem os quais não seria possível a realização dos fatos acima descritos.
MAFERSA e COBRASMA: Empresas que estiveram à frente de seu tempo e alavancaram o progresso do Brasil.
> > > Making of:
Para escrever este artigo o autor Marco Brandemarte resgatou seus conhecimentos de 28 anos de pesquisas históricas. Entretanto como historiador se deve sempre buscar a informação em fontes confiáveis e que vivenciaram o fato a ser narrado. Sendo assim agradeço imensamente ao Engenheiro Murilo Rodrigues da Cunha (*1), que exerceu a função de diretor da Cobrasma, pelos esclarecimentos essenciais. Agradeço também ao Engenheiro Paulo Cesar Lorenzini Villalva (*2) por me apresentar ao Engenheiro Murilo e pela leitura crítica deste artigo. E por fim ao amigo Igor Colombo dos Reis (*3), por fornecer os logotipos acima, impressos em 3D.
(*1) Murilo Rodrigues da Cunha ingressou na Cobrasma como estagiário em 1962, trabalhando na empresa por mais de 30 anos, chegando ao cargo de Diretor Superintendente. Implantou na empresa um sistema de processamento de dados, trazendo dos Estados Unidos em 1966 o primeiro computador para uso industrial no Brasil.
No final da década de 1970 após a Cobrasma ganhar a concorrência para o fornecimento de parte da frota de trens para a linha 3 Vermelha do Metrô de São Paulo foi para a França, iniciando um processo de cooperação e transferência de tecnologia para a fabricação de trens de metrô e subúrbio no Brasil pela Cobrasma, sob licença da Francorail.
Juntamente com uma equipe de mais dois diretores (engenheiros Rubens Cerdá Soares e Antônio Lino Fortes) coordenou a construção da planta da Cobrasma em uma propriedade rural de Sumaré (atual município de Hortolândia) onde os primeiros produtos ferroviários fabricados foram 1200 vagões gôndola para a Estrada de Ferro Carajás em 1976, 500 vagões fechados para a Bolívia, 200 vagões plataforma para a Arábia Saudíta e posteriormente a fabricação dos trens unidade do subúrbio paulistano (FEPASA) e da linha Leste-Oeste do metrô paulistano.
Foi diretor da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (ABIFER) e o primeiro vice-presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB).
(*2) Paulo Cesar Lorenzini Villalva ingressou na Cobrasma em 1976 como estagiário em Engenharia Mecânica no Departamento de Fundição e Aço, na fábrica de Osasco. Em 1977 foi admitido na unidade de Sumaré como engenheiro no Setor de Truques Ferroviários, sendo promovido em 1979 para Chefe de Caldeiraria Leve e posteriormente Chefe do Setor de Montagem de Equipamentos (AB1) e Chefe do Departamento de Acabamentos (AB), com uma equipe de 460 colaboradores.
(*3) Igor Colombo dos Reis: servidor público em Araraquara/SP, formado em Logística e em Administração. Pesquisador da história dos transportes, com foco na Companhia Trólebus Araraquara e na Estrada de Ferro Araraquara.
Artigo publicado também no site Trólebus Brasileiros, do mesmo autor.